A ideia de que precisamos nos adaptar para sermos aceitos não é nova. Guy Debord em A Sociedade do Espetáculo, já denunciava como a vida moderna se tornou uma representação contínua, um espetáculo onde o ser cede lugar ao parecer. Essa alienação não apenas nos desconecta dos outros, mas principalmente de nós mesmos.
Bell Hooks, em Tudo Sobre Amor, faz uma crítica ao sistema que nos ensina a buscar amor em estruturas que não nos acolhem. Ela fala sobre o amor como um ato político e subversivo. Para Hooks, amar é um processo de libertação que começa no autorrespeito. E esse respeito só nasce quando paramos de olhar para nós mesmos com os olhos da performance.
Já pelo olhar da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, em seus ensaios e palestras, o sistema colonial e patriarcal define os contornos do amor, da aceitação e da beleza, sobretudo, para a mulher negra – vide a data de hoje (25/07), Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, o qual reforça a urgência de reimaginar o amor para além das estruturas opressoras, reconhecendo que a mulher negra, marcada por múltiplas camadas de apagamento, tem o direito de ser amada sem precisar se reconfigurar para caber em padrões eurocentrados e masculinizados.
Aprendemos cedo que para sermos amados, precisamos “ser alguém”. Mas quem define esse alguém? A mídia? A família? A religião? A lógica neoliberal que transforma tudo — inclusive sentimentos — em mercadoria?
Somos condicionados a “atuar” o que acreditamos que nos fará aceitos — e isso inclui o amor. Quantas vezes já fomos mais simpáticos(as) do que gostaríamos? Mais obedientes? Mais disponíveis? Só para garantir um mínimo de afeto em troca?
E se o amor não fosse algo a ser merecido, mas uma condição que já existe em nós? Não por conquista, mas por natureza? Marshall Rosenberg, criador da Comunicação Não Violenta (CNV), observou em suas viagens e estudos como algumas comunidades africanas e indígenas possuem vocabulários inteiros baseados na aceitação, e nem sequer possuem expressões para conceitos como “culpa” ou “castigo”. Ele cita, por exemplo, a tribo Babemba (Zâmbia), em que quando alguém comete um erro, a comunidade inteira se reúne em volta da pessoa e começa a lembrar em voz alta todas as boas ações que ela já fez. O erro não é negado — mas acolhido, integrado e cuidado.
Esse tipo de relação só é possível onde o amor não é um prêmio, mas uma presença.
Hoje aprendemos a nos alimentar em um ciclo de autoabandono e amor romantizado. Para a quebra deste ciclo, primeiro, quem sabe, precisamos descolonizar a ideia sobre o que é o amor. Grande parte do nosso sofrimento vem da idealização do amor romântico. Aquele amor que te completa, te salva, te escolhe, te mantém. Uma fantasia vendida por filmes, novelas, músicas — quase sempre baseados em narrativas centradas na escassez, no sofrimento e na dualidade amor/dor.
A descolonização do amor passa por entender que ele pode ser expansivo, coletivo, comunitário e circular. O povo Xavante, assim como muitos povos africanos, por exemplo, possui um modelo de criação comunitária: uma criança é responsabilidade de todos. O cuidado é diluído entre muitas pessoas. Isso reduz não só o peso da maternidade/paternidade individual, mas também o sentimento de solidão e rejeição, pois a criança cresce sendo amada por múltiplos afetos, e não apenas por uma mãe ou pai idealizados.
Em culturas asiáticas como a tibetana, a noção de “compaixão” — karuna — é vista como uma extensão natural do amor por si mesmo. A prática da meditação metta bhavana (amor bondoso) ensina a cultivar o amor primeiro para si, depois para o outro, depois para o mundo. Não se ama o outro apesar de si, mas a partir de si.
Paralelamente, quem sabe, buscarmos a cura na narrativa! Se você acredita que só será amado(a) quando for diferente, estará sempre em guerra consigo. Mas se você se comprometer com a narrativa da aceitação — mesmo que doa no início — estará abrindo caminho para uma nova realidade emocional e energética.
Nutrir pensamentos com afirmações internas como: “eu mereço cuidado”, “eu me acolho mesmo quando erro”, “eu honro a minha autenticidade”, podem ser uma boa prática.
Amar-se não é um luxo, é necessidade vital. Porque o corpo que você habita é seu templo, sua verdadeira e sagrada morada nesta existência. Quando você se aceita, mesmo com falhas, medos, traumas, desejos — você se autoriza a ser inteiro(a).
Então, o que muda quando se sabe que já é amado(a)? Que não precisa atingir um padrão, uma meta, um corpo, um comportamento? Que a única condição é ser? Se cada um(a) internalizasse essa certeza, como seriam os encontros?
Conversaríamos com mais presença, não para convencer ou seduzir.
Escutaríamos com mais atenção, não para responder, mas para acolher.
Relacionaríamos com menos medo e mais verdade.
Perdoaríamos com mais facilidade, pois saberíamos que o erro não define ninguém.
Seríamos menos reativos, mais generosos.
Não precisaríamos mais dominar o outro. Nem competir por afeto. Nem mendigar atenção. As relações deixariam de ser arenas e passariam a ser danças.
Ame-se: no alcance do seu passo e no movimento de uma dança!
Tamires Santana
Assessora de Comunicação HEFC