Na cosmologia Tupi-Guarani, o humano não é concebido como um indivíduo isolado, mas como parte de um fluxo maior que envolve natureza, espírito, comunidade e palavra. A vida é regida por estados de percepção e energia que orientam tanto a conduta pessoal quanto a harmonia coletiva.
Esses estados não correspondem a categorias psicológicas no sentido ocidental – não são diagnósticos nem rótulos –, mas formas de viver e pensar que atravessam corpo, mente e território. Os três estados são Nhe’ẽ, Anhã e Porã.
O Nhe’ẽ é a palavra viva, a alma em movimento. É quando o ser humano se alinha com sua essência e, ao falar ou agir, deixa que sua inspiração seja canal de criação. O Nhe’ẽ conecta pensamento, emoção e gesto a algo maior, tornando a palavra não apenas comunicação, mas força que estrutura a realidade. Quem vive no Nhe’ẽ cultiva clareza, firmeza e autenticidade, irradiando inspiração para si e para a coletividade.
O Anhã é a queda no engano, a desconexão do espírito. Ele se manifesta quando a mente é tomada pelo medo, pela raiva, pela inveja ou pela cobiça. Nesse estado, a palavra perde o vínculo com a alma e se torna ruído, agressão ou mentira. O Anhã gera desequilíbrio, conduz ao egoísmo e à violência, seja contra si mesmo ou contra o outro. É um estado que adoece não só a pessoa, mas também a comunidade, pois rompe o fio de confiança e harmonia que sustenta a vida coletiva.
O Porã é o encantamento: a experiência da beleza, da alegria e da celebração. É quando o ser reconhece a vida em sua plenitude, enxerga a beleza no mundo e em si mesmo e se permite viver com leveza e criatividade. O Porã é movimento de comunhão – com a natureza, com a arte, com a festa, com a espiritualidade. É o estado que fortalece vínculos, promove cuidado mútuo e abre espaço para a gratidão e para a generosidade.
E por que isto importa? Esses três estados não são apenas descrições espirituais; eles funcionam como bússolas éticas. Movimentar-se em direção ao Nhe’ẽ e ao Porã significa cultivar palavras e gestos que fortaleçam a vida, afastando-se da lógica do Anhã, que destrói e enfraquece. Na prática, isso nos convida a reavaliar nossas condutas cotidianas.
Como falamos e criamos? Nossa palavra nasce da alma ou está contaminada pelo medo? Como reagimos ao conflito? Reforçamos a raiva ou buscamos a beleza do Porã? Como nos relacionamos com a comunidade e com o mundo natural? Somos fonte de harmonia ou de ilusão e desordem?
Ao reconhecer esses estados, aprendemos que espiritualidade não é uma abstração distante, mas um exercício diário de consciência, de escolha e de ação. A cosmologia Tupi-Guarani nos mostra que viver bem não é apenas sobreviver, mas cultivar inspiração (Nhe’ẽ) e alegria (Porã), combatendo o engano (Anhã) que nos aprisiona em medos e ilusões.
A cosmovisão Tupi-Guarani nos oferece uma pedagogia de vida, que ensina a alinhar palavra, energia e comunidade para que a existência seja, de fato, bela e verdadeira.
Tamires Santana
Assessoria de Comunicação HEFC