Ao assistindo a peça “Lima Barreto, ao terceiro dia”, foi inevitável lembrar que o escritor, marcado pela experiência da internação em um hospital psiquiátrico e pela exclusão social, transformou parte de sua dor em literatura. Sua escrita foi denúncia em poesia.
Há frases que são mais do que palavras. São oportunidades para um mergulho interno. “Eu não vou me afogar na travessia” citada durante a peça, ecoa como um grito íntimo de quem se vê diante da tempestade, mas decide não se deixar engolir por ela. Não se trata de negar a água que ameaça, mas de reinventar modos de respirar dentro dela. A travessia é existencial. É o percurso entre feridas e curas, entre quedas e reerguimentos, entre a dor que pesa e a criação de brechas para continuar vivendo.
O sujeito que a pronuncia reconhece o risco real de afogamento — depressão, exaustão, invisibilidade, solidão — mas decide transformar esse risco em algo: potência. O “não” que inicia a frase é um ato de insubmissão. É o corpo dizendo: “não serei capturado inteiramente pelo peso, pela loucura, pela doença, pelo cansaço”.
Nem sempre na vida a gente sai ileso, porém, é possível apesar de marcado, seguir vivo(a). E quando me refiro “vivo(a)”, quero dizer lúcido(a), consciente, estável, talvez até, risonho(a). Desde que não sucumba ou se afogue. Por isto, desaguar é preciso!
O verbo “desaguar” pode ser chave. Desaguar é permitir que a corrente encontre saída, que a água contida em excesso encontre rio, palavra, gesto. No campo da saúde mental, desaguar é criar canais de expressão que diminuam a pressão interna.
Por exemplo, encontrar na escrita um lugar para chorar sem pedir licença: um diário, poesia, cartas não enviadas. Encontrar na fala compartilhada um respiro profundo: na terapia, rodas de conversa, confissões com quem se confia – ou desconhecido(a); Encontrar no corpo em movimento formas de organizar o caos mental: com a dança, caminhada, artes marciais, yoga. Encontrar na expressão artística a catarse: por meio da pintura, música, performance, fotografia etc. Encontrar na espiritualidade algo maior para se lembrar que a travessia é maior do que o corpo individual: em rituais, meditações, rezas, na ancestralidade.
A travessia pode ser uma invenção de futuro! Não se afogar na travessia é assumir que a vida é um mar turbulento e a mesma água é cristalina e mansa. É aceitar que os golpes de onda existem, mas que é possível criar pausas, respiros, reinventar rotas. E também é lembrar que não somos obrigados(as) a atravessar sozinhos(as) — há sempre barcos solidários, há sempre quem nos estenda a mão.
Mais do que uma promessa de sobrevivência isolada, essa frase pode ser lida como uma convocação. Que na tentativa em não se afogar, a gente saia do óbvio com as inúmeras ferramentas para desaguar e faça da vida não apenas resistência e sim, reinvenção, inclusive, coletiva!
Tamires Santana
Assessora de Comunicação HEFC