O medo cega os nossos sonhos

Andando pelas ruas da Brasilândia, um detalhe me fez até voltar alguns passos, parar e pensar demoradamente: um adesivo colado na traseira de um caminhão dizia “o medo cega os nossos sonhos”. A frase atingiu como um recado direto — não desses místicos, mas desses que sintetizam, sem frescura, o que vemos diariamente nos corpos e nas conversas de uma cidade inteira tensionada entre sobrevivência e desejo.

A questão não é “manifestar” no sentido pop que tomou conta das mentes de quem busca por autoconhecimento — visualizar, mentalizar, repetir frases positivas. A questão é muito mais simples e muito mais dura: medo, ansiedade e estresse têm efeitos reais, comprovados, na nossa capacidade de planejar, decidir, persistir e criar. E isso não é espiritualidade; é neurociência, psicologia cognitiva e sociologia urbana.

Pesquisas sobre o funcionamento do córtex pré-frontal mostram que estados de ameaça — mesmo quando não existe um perigo imediato — diminuem nossa capacidade de tomar decisões complexas, pensar a longo prazo e acessar a criatividade. Ansiedade crônica bagunça a memória de trabalho. Estresse constante estreita o foco para o curto prazo.

Ou seja: quando estamos com medo, literalmente vemos e imaginamos menos. O adesivo no caminhão, acaba sendo mais preciso que muito coach: o medo cega porque reduz nossa percepção, nossa capacidade de imaginar cenários futuros, nossa disposição de risco — ingredientes essenciais de qualquer ação transformadora.

Li recentemente um post no Instagram dizendo: “não adianta ler todos os conteúdos de Hélio Couto se você continuar com ansiedade e medo e tals…”. Concordo, mas a crítica precisa ser ampliada para a fisiologia…cansaço, insônia, ausência de nutrientes adequados; para a emoção…ansiedade não tratada, traumas, insegurança financeira; para o ambiente… insegurança, violência, sobrecarga, ausência de tempo livre; para a estrutura…racismo, desigualdades e inúmeras ausências, pra começar pelas políticas públicas.

A promessa de “manifestar” algo ignora que o cérebro humano não acessa criatividade plena quando está funcionando em modo de ameaça. Não é misticismo que bloqueia, é o sistema nervoso. Se a mente está em alerta, não há técnica mental que resolva. Antes de imaginar, o corpo precisa se sentir seguro.

E não que o mundo precise estar perfeito para as coisas manifestarem, contudo, é necessário retirar o glamour esotérico e reinterpretar “manifestar”, que pode estar na dimensão da: capacidade de projetar cenários futuros.

E em falar em futuro, nos últimos meses, dando aula para crianças, percebi algo que ultrapassa a energia natural da infância: uma aceleração crônica, um imediatismo inflamado, um grau de agressividade no brincar e uma presença constante de referências violentas de filmes, vídeos e jogos.

Essas crianças são da periferia. E aqui o ponto não é moralista — não é sobre “conteúdos inadequados” — mas sobre o ambiente psicológico que se forma quando a infância deixa de ser território de experimentação para se tornar território de vigilância, competição e sobrevivência emocional.

Uma geração crescendo sob aceleração, medo e agressividade aprende cedo a operar em estado de alerta. E um corpo em alerta não sonha. Ele calcula riscos. Ele evita perigos. Ele encolhe horizontes.

Se as crianças estão crescendo incapazes de imaginar um futuro seguro, que tipo de adultos estamos formando? Que tipo de país constrói gerações que não conseguem visualizar possibilidades porque a vida já ensinou que qualquer distração é uma ameaça?

“O medo cega os nossos sonhos” não deveria ser uma frase poética. Deveria ser um alerta.

Medo não é apenas sensação. É política pública, é biologia, é desigualdade, é pauta de saúde mental, é cultura.

Sonho não é abstração. É planejamento, é foco, é bem-estar, é ambiente propício, é comunidade.

As cidades deveriam ser lugares que ampliam visão, não que sufocam a vida. As infâncias deveriam ser espaços de imaginação expansiva, não de defesa constante.

Enquanto ajustamos nossa vida para caber em ambientes que geram medo e aceleração, perdemos justamente o que nos move adiante: a capacidade de imaginar algo diferente.

E talvez seja esse o maior projeto coletivo que nos falta — criar condições reais, materiais e emocionais para que sonhar não seja um ato de coragem individual, mas uma possibilidade comum.

Tamires Santana

Assessora de Comunicação HEFC

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