Processos inacabados

Processos inacabados são uma espécie de fantasma cotidiano: rondam a nossa mesa, a nossa memória, o nosso país. Somos educados a acreditar que tudo precisa de um desfecho, uma moral da história, um ciclo fechado com laço de fita. Mas essa expectativa linear – começo, meio e fim – é uma invenção cultural, não uma lei da natureza.

E, quando o final não vem, o cérebro protesta: ativa mecanismos de tensão cognitiva, busca preencher lacunas, tenta “resolver” o que não tem solução. A psicologia chama isso de efeito Zeigarnik: a tendência a lembrar mais do que ficou pela metade do que do que foi concluído. Nosso cérebro detesta silêncio onde esperava um ponto final.

Mas talvez o incômodo não seja o processo inacabado em si — e sim o mito de que tudo deveria “acabar direito”. Na vida real, e especialmente em territórios marcados por colonialismo, violência histórica e disputas políticas, o inacabado não é acidente: é condição estrutural, estratégia de poder, marca de resistência e modo de sobrevivência.

As ciências têm suas obras inacabadas: as linhas abertas de Darwin sobre a evolução humana, que ele próprio evitou fechar; No campo artístico, Clarice Lispector escreveu livros que parecem interromper o próprio ato de pensar; Frida Kahlo deixou quadros que abrem mais perguntas do que respostas; Hélio Oiticica concebeu projetos que exigiam a continuidade do público; García Márquez abandonou manuscritos inteiros porque “nunca terminariam de amadurecer”. São produções que recusam a lógica do acabamento como prova de valor.

Também não faltam acontecimentos históricos marcados pelo inacabado: as independências que libertaram, mas não decolonizaram; as constituições escritas e reescritas, ora genérica, ora específica demais; as reformas agrárias interrompidas; os processos de justiça transicional que começam e param. E, apesar do caos — ou por causa dele — criamos universos culturais, espirituais e políticos que escapam às formas “finalizadas” impostas por modelos que pregam um tal “progresso”.

O ponto crítico é entender que o “inacabado” não é falha; é linguagem. É o modo como coletividades que vivem sob tensão permanente se reinventam. É um tipo de inteligência social: quando não dá para encerrar, a gente reconfigura. Quando não dá para concluir, a gente transforma o rascunho em território e, às vezes, identidade. E isso desmonta o mito do final perfeito — uma promessa que tenta impor a ideia de que só tem valor o que termina. Na prática, o que pulsa na vida real são sistemas abertos: relações, projetos, políticas, obras, ideias que seguem sendo reescritas. A incompletude não é fraqueza, é dinamismo.

E, se você olhar de perto, o mundo cerebral e o mundo social se encontram: o cérebro tenta fechar a lacuna, mas a experiência da vida que pulsa ensina a dançar com ela. Aqui, o inacabado é convite, não defeito. É margem fértil. É movimento. É o campo onde a criatividade cresce justamente porque nada está consolidado demais para não poder ser mexido.

Aliás, falando em movimento, é importante levar em consideração…contudo,…

Tamires Santana

Assessora de Comunicação HEFC

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