A cena era improvável: entre as pedras frias e a água corrente da cachoeira em Francisco Morato, um abacaxi — levemente desfalecido, porém ainda firme em sua essência — repousava como um corpo deslocado, um alerta mudo. À primeira vista, um objeto descartado. Mas, num segundo olhar, uma metáfora contundente sobre a nossa própria existência: quantas vezes permanecemos onde não deveríamos estar, sobrevivendo apesar do ambiente, mas perdendo vitalidade, textura, brilho?
O fruto, assim como tantas de nós, estava ali porque alguém o deixou fora do lugar. Não por escolha própria, mas por ação de outras mãos, outras expectativas, outras prioridades. Uma força externa que define o destino de quem não prioriza e escolhe o que realmente faz sentido. É assim também quando sugerem que nos encaixemos em moldes que não nos pertencem. Que sejamos “menos isso”, “mais aquilo”, “adequadas”, “comportadas”, “aceitáveis”. Cada concessão, por menor que pareça, pulveriza a essência.
E, aos poucos, vamos nos tornando como o abacaxi na cachoeira: deslocadas, mas tentando parecer inteiras; frágeis, mas mantendo uma aparência de firmeza; sobrevivendo, quando poderíamos estar florescendo.
O problema é que essa sensação de estar fora do lugar não surge do nada. Ela se instala quando faltam coragem e voz para nomear o incômodo, para admitir que há estruturas que nos aprisionam, narrativas que nos sabotam, relações que nos restringem. E, principalmente, quando não ousamos reorganizar as coisas que já sabemos que não fazem sentido. Muitas vezes, deixamos tudo como está porque enfrentar desagrada, questionar desestabiliza, e mudar exige uma honestidade que nem sempre estamos preparadas para sustentar.
Mas o preço da adaptação forçada é alto: acumulam-se objetos, situações, hábitos, toxinas, pessoas e ideias fora do lugar. Até que a paisagem interna se torna tão confusa quanto aquela rocha coberta por um fruto que não pertence ali.
A pergunta que fica é: como fazemos para que as coisas voltem ao lugar?
Antes de mover qualquer peça, é preciso reconhecer que não existe “lugar devido” sem antes descobrir quem somos de fato. Quem somos quando ninguém está olhando? Quem somos sem agradar? Quem somos quando não precisamos caber?
Colocar as coisas de volta ao lugar não começa arrumando o mundo ao redor. Começa arrumando o centro. Começa na coragem de assumir que certas pedras não são nossas, certas águas não nos pertencem, e certas expectativas nunca deveriam ter delimitado nossa forma de existir.
O movimento emancipatório nasce quando deixamos de tentar sobreviver em ambientes que não acolhem nossa natureza. Quando paramos de pedir permissão para ocupar o espaço que é nosso por direito. Quando entendemos que preservar a própria essência é um ato de responsabilidade, não de rebeldia.
Só então conseguimos escolher, com lucidez, qual é o nosso lugar.
Não o lugar que nos empurraram. Não o lugar que esperam de nós.
Mas o lugar onde podemos frutificar sem precisar enrijecer para não desmoronar.
O abacaxi na cachoeira lembrava isso: tem coisa fora do lugar! E como têm. Mas é necessário focar na emancipação, gesto íntimo e firme de recolher-se de volta a própria verdade — mesmo que isso implique reorganizar toda a paisagem ao redor. Estar fora do lugar não é fracasso. Fracasso é permanecer por medo de se mover.
Tamires Santana
Assessora de Comunicação HEFC